Foi na Faculdade. Eu já tinha idade para ter juizo, mas, uma educação ainda muito centrada na figura da autoridade do "Senhor Professor", fazia-me tremer só de me imaginar entrar numa oral de "Direito dos Contratos". Hoje rio-me. Rio-me de mim e rio-me do professor. Duas figuras absolutamente patéticas, cada uma à sua maneira.
Apesar de ter tirado um catorze na frequência, tive, de acordo com as regras da Faculdade, de fazer uma oral. As salas onde se realizavam as orais, eram tribunais onde entravamos condenados à partida. O Senhor Professor estava ali não para avaliar o que sabiamos, mas sim para descobrir o que não sabiamos. Conseguindo-o, não mais largava a presa. O aluno era trucidado sem piedade, frente aos colegas que assistiam, supostamente para se "preparar" para o seu momento de tortura.
Entrei na sala. O senhor professor, sem levantar a cabeça das folhas que lia, mandou-me sentar com um gesto. Olhou para mim por trás dos óculos pretos, estilo "Clark Kent", com a sobranceria que eu tão bem conhecia das aulas e disparou o primeiro tiro: defina o que é um contrato.
Comecei a falar. Não sei o que disse, mas sei que não disse nada do que o Senhor Professor queria. As palavras dançavam-me na cabeça: contrato, uma ou mais pessoas, vontade comum, efeito convergente. Não conseguia ligar nada, nada fazia sentido. O senhor professor, bondoso como só ele, olhava para a biqueira do sapato, bocejando, enquanto escrevia em letras garrafais á minha frente: "REPROVADA". Tinham passado trinta segundos desde que entrei na sala. As regras da faculdade obrigavam a que as orais durassem um mínimo de vinte minutos, e, no tempo que restou, o Professor limitou-se a arrastar o meu cadáver ensanguentado pela sala fora, à frente de uma plateia tanto assustada como ávida de sangue alheio.
Cá fora fiz o mesmo de sempre: liguei á E. e ao namorado da altura, reuni a irmã, a mãezinha e o paizinho que me fizeram ver que o Mundo não tinha acabo nesse dia. E recomeçei a estudar.
Em Julho, exame. Novamente um catorze. Novamente uma oral com o mesmo professor. Entrei na sala, depois de ter estado toda a noite anterior a memorizar a definição de contrato, decidida a provar que sabia e que não era uma fraude.
Primeira pergunta: "então, minha senhora, já sabe o que é um contrato"?
E outra vez as letras a dançarem-me à frente dos olhos: duas ou mais pessoas, vontade comum, convergente, efeito júridico. Nada faz sentido outra vez.. Vejo o Sr. Professor a escrever "REPROVADA" à minha frente, mesmo antes de ele pegar na folha. Sinto as mãos suadas e o corpo a tremer. O sr. Professor vibra enquanto pega devagarinho na folha e na caneta vermelha. Abana a cabeça, num sorriso incrédulo. Volta a escrever a palavrinha mágica :REPROVADA. Sou a sua aluna preferida, não tenho dúvidas disso.
Cá fora, os colegas prestes a entrar no cadafalso, pedem-me ajuda para resolver dúvidas. Não há nada relativamente ao diabo dos contratos, que eu não saiba. Só não me peçam para defini-los em frente à giboia falante que se tornou para mim o Sr.Professor.
Setembro, nova tentativa. Desta vez, com ajuda de um fiel amigo: xanax. Passei sem distinção. Definitivamente, já naquela altura devia ter percebido que Direito não era a minha praia.
Hoje, catorze anos depois, e recordando este momento, a definição de contrato vem-me à memória sem dificuldade: acordo celebrado entre duas os mais partes em sentido convergente, tendente à produção de um efeito júridico unitário. Tão simples.
Como tão simples seria que eu tivesse pedido ao professor, meu colega humano, que esperasse um pouco, que me permitisse respirar e pensar. Como tão simples seria que o professor, pessoa como eu, me dissesse para descontrair, para pensar noutro assunto, que logo voltariamos aquele. Tão simples. Somos todos humanos. E é sempre tão complicado.