quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ira is my midle name

Não há estereótipo que me irrite mais do que o do Dâmaso Salcede. É que ele há "Dâmasos" por todo o lado. E como não podia deixar de ser, perto de mim, lá na linha de produção disfarçada de Banco onde trabalho, senta-se uma "pequena Dâmaso". Subserviente, escorregadia, graxista, de cara amarrada para com os colegas e sorriso aberto para as chefias, como convém. Lembram-se das cena dos Dâmaso sempre atrás do Carlos da Maia, a dizer que ele era "trés chic"? Pois é do género. Se o Eça vivesse nos dias de hoje, ela teria lugar cativo nas suas obras.


Ora aqui a Maria, que já leva sete infelizes anos de Banco na pele, foi quem deu formação a este ser. Foi quem ouviu as suas dúvidas angustiadas e quem desfez as suas asneiras sem nada dizer. No mês passado a chefe foi de férias e ao contrário do habitual, delegou as competências na “pequena Dâmaso”. Ok, até aqui tudo bem. Tenho que aceitar sem problemas. A colega trabalha bem, está definitivamente mais motivada que eu, é justo. O problema é que a “ pequeno Dâmaso”, não contente com isso , decidiu que, bonito bonito, era achincalhar a velha mestre à frente dos colegas, para que não restassem dúvidas de “quem é manda aqui agora”. E lembrou-se então de vir lá do outro lado do escritório, salto alto a bater com força no chão, voz colocada e “ Ó Maria, quero que faças isto, e isto, e isto, ok? E rápido, por favor está bem?", seguido da frase suicida "não mandes nada sem me mostrar primeiro, ok?"

Para falar a verdade, o mostro dentro de mim levantou as orelhas logo que ouvir os sapatinhos a bater com força no chão, pelo que, quando chegou ao fim da frase, já ele estava de boca aberta, pronto a engolir a imbecil. Senti o mesmo de sempre : o chão a fugir-me dos pés, o coração que parece que ora vai parar de bater, ora não pode bater mais depressa, as mãos suadas, que, de repente parecem ficar com vida própria, de tanto gesticularem. E a vontade de bater. Sim. Vontade de bater. Porque dentro desta pequena Maria há um gladiador implacável. Um mostro de Lockness. Uma padeira de Aljubarrota.
Não vou escrever aqui o que lhe disse. Sobretudo porque não me lembro. Sei que mais tarde alguns colegas comentaram comigo que fiz muitas referências a palavras como autocracia, despotismo e 25 de Abril. Aparentemente , a “pequena Dâmaso” também não percebeu o meu discurso. Mas, pelo menos deve ter entendido o essencial já que bateu em retirada, fez ela o trabalho que me pediu e não fala comigo até hoje.

Explicar a ira não é fácil para mim, porque até certo ponto, é como ter que me explicar a mim mesma e, infelizmente, não venho com manual de instruções. Porque a ira vive dentro de mim e confunde-se comigo. Eu sou a sua casa. Durante anos, tive um grande sentimento de culpa por alojar este inquilino, mas agora não. A idade também tem que servir para alguma coisa. A ira em mim é como aquela sensação que se tem antes do descolar de um avião: já ganhou muita velocidade e é tarde demais para parar. Comigo é igual. Embora, confesse, que o que vem depois não me trás paz. O C. diz-me muitas vezes “ pensa no que é que ganhaste com isso”. E no fundo se calhar tem razão. Não ganho nada. Nas noites seguintes não durmo. Nada. Penso continuamente na situação. Revejo-a vezes sem conta na minha cabeça. Penso que que podia ter dito mais isto ou aquilo que podia fazer toda a diferença. Castigo-me.
Não é fácil viver comigo. O C. diz-me que parece que tenho que estar sempre em luta com alguma coisa. Na verdade tem razão. Não gosto de ver a vida passar-me ao lado. Não gosto de não intervir. Não gosto de ter coisas por dizer. E vivo sempre neste limbo. Às vezes olho para o C. e tenho inveja. Ele parece-me genuinamente mais feliz que eu. Não tem preocupações. Não acha que tudo é uma injustiça. Não o incomoda o chorar dos outros desde que não o oiça. Dorme descansado. Às vezes, também eu gostava de dormir assim.